image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 1 TRANSPARÊNCIAS VELADAS: OS USOS ECONÔMICOS DOS SISTEMAS DE AVALIAÇÃO DE APRENDIZAGEM NAS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO TRANSPARENCIAS VELADAS: LOS USOS ECONÓMICOS DE LOS SISTEMAS DE EVALUACIÓN DEL APRENDIZAJE EN LAS POLÍTICAS EDUCATIVAS VEILED TRANSPARENCIES: THE ECONOMIC USES OF LEARNING ASSESSMENT SYSTEMS IN EDUCATION POLICIES Cristian Andrei TISATTO1RESUMO: Este estudo qualitativo desenvolvido a partir de pesquisa bibliográfica propõe-se a analisar, a luz da teoria dos Múltiplos Fluxos de Kingdon, o caso de formação de agenda e formulação da política nacional de currículo que dá origem a BNCC. Sob um cenário político controverso e, identificando uma janela de oportunidades, grupos vinculados ao mundo empresarial formam coalizões e alianças de modo a influenciar a agenda pública e apresentar suas ideias à arena de debates das políticas educacionais de educação, disputando o conteúdo da educação brasileira. Nesse contexto, analisamos o papel do accountabilitye dos indicadores, argumento empregado por determinadas coalizões, que justificavam a necessidade de reforma pelos resultados de avaliações de larga escala, que sustentam o argumento de uma ausência de qualidade da educação. Tal melhoria ocorreria a partir de reformas como a que originou a BNCC e colocou em disputa projetos de estado, educação e sociedade. Os mecanismos de accountability, tendo seus resultados interpretados por grupos de interesse, foram fundamentais para a sustentação do processo reformista e importante ferramenta para influenciar a formação de agenda e a formação de políticas alinhadas às perspectivas de uma gestão gerencialista do Estado. Conclui-se que o Estado tem suas funções redesenhadas, e que as fronteiras entre o público e privada tornam-se difusas. Na política educacional em discussão, identifica-se o avanço da participação de atores e instituições do mundo corporativo influenciando o conteúdo da política educacional. PALAVRAS-CHAVES: Políticas educacionais. Indicadores.Accountability. BNCC. Reformas de Estado. RESUMEN:Este estudio cualitativo desarrollado a partir de la investigación bibliográfica propone analizar, a la luz de la teoría del flujo múltiple de Kingdon, el caso de la formación de la agenda y la formulación de la política curricular nacional que originó la BNCC. Bajo un escenario político controvertido y, identificando una ventana de oportunidad, grupos vinculados al mundo empresarial, forman coaliciones y alianzas con el fin de influir en la agenda pública y presentar sus ideas a la arena de debates de políticas educativas, disputando el contenido de la educación brasileña. En este contexto, analizamos el papel de la rendición de cuentas y los indicadores, un argumento empleado por ciertas coaliciones, que justificaban la necesidad de reforma por los resultados de las evaluaciones a gran escala, que apoyan el argumento de una ausencia de calidad de la educación. Esta mejora se produciría a partir de 1Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo RS Brasil. Doutorando em Ciências Sociais - CAPES. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8029-5237. E-mail: cristian-tisatto@hotmail.com
image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 2 reformas como la que originó el BNCC y puso en disputa proyectos estatales, educativos y sociales. Los mecanismos de rendición de cuentas que tienen sus resultados interpretados por los grupos de interés fueron fundamentales para apoyar el proceso reformista y, herramienta importante para influir en la formación de la agenda y la formación de políticas, alinea las perspectivas de una gestión gerencial del Estado. Se concluye que el Estado tiene sus funciones rediseñadas, los límites entre lo público y lo privado se vuelven difusos. En la política educativa en discusión, se identifica el avance de la participación de actores e instituciones del mundo corporativo influye en el contenido de la política educativa. PALABRAS CLAVE: Políticas educativas. Indicadores. Responsabilidad. BNCC. Reformas del Estado. ABSTRACT: This qualitative study developed from bibliographical research aims to analyze, in the light of Kingdon's Flow Multiples theory, the case of agenda formation and formulation of national curricular policy that gave rise to the BNCC. In a controversial political scenario and, identifying a range of opportunities, groups linked to the business world, form coalitions and alliances with the aim of influencing the public agenda and presenting their ideas in the arena of debates on educational policies, disputing the content of Brazil education In this context, we analyze the role of accountability and two indicators, argued by some coalitions, that justify the need for reform based on the results of large-scale evaluations, which support the argument of the lack of quality in education. Such an improvement would come from reforms such as the one that originated the BNCC and put into dispute state, education and society projects. The accountability mechanisms have their results interpreted by the interest groups, fundamental ways of sustaining the reform process and an important tool to influence the formation of the agenda and the formation of policies aligned with the perspectives of a managerial management of the Condition. I concluded that the State has its functions redesigned, the limits between the public and the private are blurred. The educational policy under discussion identifies or promotes the participation of actors and institutions from the business world that affect the content of the educational policy. KEYWORDS: Educational policies. Indicators. Accountability. BNCC. State reforms. Introdução O Campo da educação tem recebido destaque na grande mídia e despertado inquietações nas comunidades escolares, especialmente após a homologação da Base Nacional do Ensino Médio e com expectativas de reforma do Ensino Médio, uma das etapas que mais promoveu debates e problematizações em relação ao movimento reformista. Há, portanto, uma série de trabalhos que se propõe problematizar e discutir a BNCC, especialmente, oriundos das faculdades e programas de pós-graduação em educação do país. O presente trabalho consiste numa abordagem diferenciada da problemática em debate, propõe-se a analisar a formulação da política que deu origem a BNCC, a partir da teoria dos Múltiplos Fluxos de John Kingdon um cientista político que mapeou políticas públicas e os processos inerentes a formação delas,
image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 3 contemplando desde a identificação do problema público, a formação da agenda e o processo de formulação da política. O caso em tela identifica o modelo de Kingdon (1994) como recurso de análise e vai além: discute o conceito de accountabilitye o seu papel de destaque, apropriado pelos atores e instituições que influenciaram na BNCC. O conceito de accountability, discutido por Afonso Janela, além dos conceitos de New Public Management e Nova Gestão Pública, são relacionados a teoria de Kingdon e auxiliam nas discussões que este trabalho propõe. A hipótese estudada, a partir de um conjunto de bibliografias e referências que transitam no campo das ciências sociais e da educação, nos conduzem a ideia de que as reformas que originaram a BNCC, são um produto de um processo contínuo de discursos que apontam o fracasso da educação, o que exige uma resposta: surgem, então, os novos atores influenciando as políticas educacionais. São empresários bem-sucedidos e de posse de capital econômico e, através deste, contribuem com pacotes de soluções para as políticas, encaixando-se no Estado, influenciando políticas e redefinindo funções e fronteiras entre o público e o privado. Assim, os indicadores, mecanismos de accountabilitysão o motor das grandes reformas, pois subsidiam discursos e oportunizam encaixes de novos atores ao Estado, definindo conteúdo e imagem das políticas educacionais. Para essa discussão, propomos a divisão deste ensaio em três seções: Na primeira delas, discutimos e aprofundamos leituras de Kingdon, utilizadas como recurso analítico da política nacional de currículo BNCC, em discussão neste ensaio. Já na segunda seção, discutimos o conceito de accountability, a partir das teorias de Almerindo Janela Afonso e o papel destes instrumentos como mobilizador da reforma. Na seção seguinte, discutimos os impactos dos indicadores na formulação da política nacional de currículo BNCC, além de relacionar a categoria accountabilityà teoria dos “encaixes” defendida pela cientista política Theda Skocpol(1992), que apresenta interações de atores “estranhos” ao mercado e possibilidades destes encaixarem-se nas estruturas do Estado e, assim, influenciar o desenho de políticas públicas. Por fim, apresentamos nossas considerações finais, tecendo uma análise que discute com os diferentes conceitos e categorias abordados no trabalho.
image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 4 A teoria de John Kingdon como recurso analítico para a formação de agenda: a BNCC em pauta Kingdon sugere, em seu modelo de análise, três fluxos interdependentes pelos quais passa a política pública: (i) o problema, (ii) as alternativas e soluções e (iii) a política. No quadro abaixo, Capella (2018, p. 45) apresenta o modelo de Kingdon: Figura 3O modelo de Kingdon Fonte: Capella (2007, p. 98) O primeiro fluxo se destaca pela capacidade de reconhecer um problema público. Elevar uma questão social a um problema requer a interpretação do fenômeno e sua classificação como um problema que requer soluções. Ou seja, o problema existe a partir do momento em que é reconhecido pelos formuladores de políticas ou tomadores de decisão. Há um universo de problemas e uma incapacidade prática de resolver todos eles. Por isso, o autor elenca três mecanismos que subsidiam a necessidade de tomada de decisão pelos formuladores de política. Os três mecanismos que despertam a atenção pública e colaboram na composição da agenda de políticas são (i) os indicadores, (ii) os eventos e crises e (iii) o feedbackde ações governamentais. Tais indicadores interessam à presente análise justamente por terem colaborado na construção dos argumentos, transformando um diagnóstico elaborado por uma comunidade delimitada de especialistas em problema com statuspúblico.
image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 5 Aprofundando o modelo: uma possibilidade de análise de políticas públicas Com o avanço das reformas de Estado e a expansão da ideia de New Public Management,inclusive sobre as políticas de educação (AFONSO, 2001; PACHECO, 2019), cada vez mais observa-se a adoção de lógicas de gestão gerencialistas e mercadológicas, transpostas do mundo corporativo-empresarial. Embora autores como Laval (2004), Freitas (2018) e Pacheco (2019) já sinalizassem para propósitos distintos, observa-se fortemente um alinhamento das políticas de Estado com os mecanismos e instrumentos de avaliação de larga escala. Essas políticas são promovidas por agências multilaterais que financiam programas de avaliação2com impacto significativo em ações no campo educacional. Dentre elas, (i) a recente reforma do currículo, motivada por avaliações externas de larga escala, que impacta o conteúdo objeto do processo de ensino e aprendizagem; (ii) a indústria de publicações didáticas, a qual movimenta significativos recursos com financiamento do Programa Nacional do Livro Didático; (iii) programas e políticas educacionais, que direcionam ênfase em prol de uma gestão de resultados, reduzindo a função da escola a uma instituição burocrática certificadora do desempenho, alicerçada em uma pedagogia tecnicista e comprometida com os resultados de avaliações de larga escala. A lógica neoliberal de ranqueamento expande-se, privilegiando escolas com melhores posições e desconsiderando contextos de desigualdade, que necessitariam de maior atenção e investimentos. Afonso (2001, p. 26) descreve o Estado Avaliador, no qual há “predomínio de uma racionalidade instrumental e mercantil que tende a sobrevalorizar indicadores e resultados acadêmicos quantificáveis e mensuráveis sem levar em consideração as especificidades dos contextos e dos processos educativos”. A responsabilização pelo mau desempenho em avaliações recai sobre os sujeitos implementadores de políticas, como professores e gestores. Para Afonso (2001), a “estratégia pragmática com efeitos simbólicos” deavaliar aprendizagens para atribuir responsabilidades a esses atores “promove uma nova representação sobre o papel do Estado, que está cada vez mais distante das funções de bem-estar social e das obrigações que assumira quando era o principal provedor e fornecedor de bens e serviços educativos” (AFONSO, 2001, p. 27). Assim, o Estado articula estratégias que garantam “habilidades e competências” esperadas dos estudantes. Inclui, por exemplo, a padronização do currículo e a estandardização dos conhecimentos. Afinal, só há possibilidade de mensuração se houver mecanismos de controle sobre o que se está abordando nas salas de aulas. 2Cf. Hypolito e Jorge (2020). Os autores discutem os organismos internacionais, dentre eles a OCDE e destacam o papel das avaliações de larga escala, como o PISA.
image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 6 Tais parâmetros de comparabilidade, replicados em indicadores sobre cada unidade escolar, remetem à accountabilitye prestação de contas. Se analisados os dados estatísticos destas avaliações, conclui-se com celeridade que o Brasil não tem tido resultados satisfatórios. Aliás, figuramos entre os países com menor rendimento nestes instrumentos avaliativos. O papel dos indicadores para a formulação de políticas públicas é imprescindível. No entanto, como qualquer movimento político, é preciso atentar-se aos interesses e atores que se mobilizam em prol de um processo de interpretar os dados, resultantes de processos de avaliação. O uso dos indicadores, na perspectiva de Kingdon, mostra-se como mecanismo importante para a construção de uma leitura da realidade. É a interpretação destes dados que “auxiliam a demonstrar a existência de uma questão” (CAPELLA, 2005, p. 5). Foram estes indicadores, interpretados por grupos sociais orientados por interesses, como as fundações empresariais, que colocaram a reforma no centro da discussão. Cabe, aqui, contextualizar três aspectos, quais sejam: (i) as fundações empresariais mencionadas articularam uma coalizão, uma organização sem fins lucrativos denominada Movimento pela Base (MpB)3, que reúne instituições como Fundação Lemann, Itaú Unibanco, Fundação Vivo-Telefônica, Instituto Natura, Fundação Roberto Marinho, fundadores do grupo Globo de Comunicação, etc; (ii) a articulação deste movimento em torno dos dados do PISA4, que insistia sobre a pertinência de uma reforma na educação nacional, precisamente em um momento de forte tensão política; e (iii) a formulação da BNCC, prevista no Plano Nacional de Educação, promulgado em 2014, e já na Constituição Federal de 1988. A interpretação dos indicadores reforçou uma narrativa sobre a crise na educação brasileira. Neste sentido, diferentes atores concordam. As discordâncias aparecem nos seguintes aspectos: o papel das avaliações de larga escala; o “aligeiramento” e a “urgência” de aprovação; o silenciamento de algumas vozes, a anulação de versões anteriores do documento, o caráter anti-democrático apontado por diferentes instituições vinculadas à academia como ANPEd, ANPOCS e estudiosos como Dourado (2020), Macedo (2016) e Aguiar (2018), esta última que compunha o Conselho Nacional de Educação naquele período e que narra o processo “controverso” e “acelerado” de aprovação. O fato é que as instituições que fundaram o MpB investiram capital econômico para veicular, por exemplo, propagandas na televisão aberta para sensibilizar sobre a reforma. Num 3Disponível em: https://movimentopelabase.org.br/. Ainda, sobre a composição deste Movimento, sugerimos a leitura de Michetti (2020) e Peroni e Caetano (2015) 4O Movimento Pela Base nos seus princípios destaca o papel do PISA, como avaliação externa. Mais informações disponíveis em: https://movimentopelabase.org.br/wp-content/uploads/2020/12/mpb-5visoes-principios-doc-principal-interativo.pdf. Acesso em: 07 jul. 2021
image/svg+xmlRev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 15, n. 00, e022006, 2022. e-ISSN: 1982-8632 DOI: https://doi.org/10.26843/ae.v15i00.1080 7